Quem quer o SUAS?

O tema das Conferências Municipais de Assistência Social em 2015 foi "o SUAS que temos e o SUAS que queremos". Ainda em processo de consolidação, o Sistema Único da Assistência Social (SUAS) não se firmou como política pública conhecida (e reconhecida) por políticos, técnicos, gestores e população. Então, quem é esse “nós”, quem quer o SUAS?

Os prefeitos?
Em geral, eles querem a Assistência Social, mas ainda no modelo antigo, assistencialista. Poucos prefeitos conhecem estrutura, os conceitos e os objetivos do SUAS. Tanto é que mantêm Fundos Sociais de Solidariedade que funcionam, muitas vezes, na contramão e contra a Assistência Social. Em muitos municípios, a secretaria é entregue para acomodar interesses de alianças políticas, nem sempre com a escolha de pessoas que conhecem o SUAS.
Os vereadores?
Até hoje, em muitos municípios, há vereadores que estão interessados em encaminhar eleitores para retirar cestas básicas ou outros benefícios materiais ou em viabilizar convênios e emendas para entidades não governamentais, independentemente das necessidades e do ajustamento desses recursos para a política municipal e suas prioridades.
Os técnicos da AS?
Em muitos municípios, as práticas de atendimento ainda estão presas ao modelo de “ajudar”, “atender”, sem a necessária atualização metodológica e conceitual necessária ao SUAS. Há profissionais que ainda encaram a AS como uma política para ajudar os pobres, tirar pessoas da rua de forma sanitarista, que não fazem trabalho comunitário e até têm receio de entrar nas comunidades – quanto mais estabelecer relações e vínculos com elas. As técnicas e metodologias utilizadas ainda estão na era de coisa pobre para gente pobre, com oficinas de costura, trabalhos manuais, reuniões das quais ninguém gosta de participar, ações rotineiras e sem foco em cada especificidade, em cada situação, em cada família, em cada território.
Ainda mais, há um verdadeiro circuito de troca de emprego, atrás sempre de concursos em diferentes municípios, que têm impedido a formação de equipes mais permanentes.
As organizações sociais?
Nos últimos anos muitas ONGs mudaram seus estatutos, mudarem seus objetivos declarados para continuar a fazer exatamente a mesma coisa que faziam antes do SUAS, sem conexão real com a política e as prioridades municipais, participando como supostos representantes da sociedade civil nos conselhos municipais da AS e da Criança e do Adolescente para tentar manter os mesmos procedimentos de convênios ou mesmo de subvenções. A enorme dificuldade de implantar de fato a nova sistemática de chamamento é um indicador muito forte da resistência das ONGs ao SUAS.
A população?
Em geral, a população tem poucas informações sobre o SUAS e seus objetivos. Isso não é uma “falha” ou “culpa” da população, mas falta de informação e mobilização que deveriam ser desenvolvidas pela AS. Então a população é mantida numa situação de “pedinte”, quando deveria ser exigidora de seus direitos. Como costumo dizer, todo mundo sabe o que deve acontecer e o que deve ser entregue por uma escola ou por um posto de saúde. Mas e os CRAS? E os CREAS?
Além disso, para muitas parcelas da população brasileira, os serviços socioassistenciais e os programas de transferência de renda são vistos com preconceito e total falta de entendimento. Isso está expresso inclusive em um dos documentos do CNAS preparatórios às conferências: “As conquistas alcançadas não representam consenso e são, ainda, permeadas pelo preconceito”.

Então, quem quer o SUAS?

A estrutura da AS é decorrência da adoção no Brasil, a partir da Constituição de 88, dos princípios de garantia integral dos direitos humanos. Essa é uma responsabilidade central, uma das razões de ser, de um Estado democrático. Direitos humanos entendido em sua acepção correta, tal como expressa nas convenções internacionais. Podemos resumir usando, como quadro geral, as dimensões da chamada proteção integral do ECA: vida e saúde; educação, esporte, cultura e lazer; convivência familiar e comunitária; liberdade, respeito e dignidade; profissionalização e proteção no trabalho. Esses direitos devem ser assegurados a toda a população – crianças e adolescentes têm prioridade, mas esses são os direitos humanos, razão de ser das políticas públicas. Em seu fundamento, as políticas públicas são desenvolvidas para garantir os direitos humanos, com responsabilidade central do poder público e participação da sociedade.
Um dos instrumentos centrais para essas garantias é a chamada seguridade social: conjunto integrado de ações de iniciativa dos poderes públicos e da sociedade, destinadas a assegurar os direitos relativos à saúde, à previdência e à assistência social - artigo 194 da Constituição.
Uma característica fundamental da AS, como também da saúde, dentro desse tripé da seguridade, é seu caráter não contributivo:
Art. 1º da LOAS: A assistência social, direito do cidadão e dever do Estado, é Política de Seguridade Social não contributiva, que provê os mínimos sociais, realizada através de um conjunto integrado de ações de iniciativa pública e da sociedade, para garantir o atendimento às necessidades básicas.
Isso significa que é gratuita mas, além disso, que é universal. Ou seja, é um direito inalienável de todos os brasileiros.
Sejamos francos: a construção de uma política universal, voltada ao acesso e garantia de direitos, é um salto civilizatório em um país preconceituoso, conservador, com imensas desigualdades sociais, um país recém-saído de uma ditadura militar, com estruturas de hierarquia e submissão social. Para esse país, falar que pobres, negros, mulheres, de qualquer origem e qualquer religião, têm os mesmos direitos dos brancos ricos ou de classe média, que não precisam ser “ajudados” mas têm direitos que precisam ser garantidos, para esse país isso foi – e ainda é – algo difícil de aceitar.
E por um conhecido processo de formação de ideias sociais que partem das classes ricas, mesmo as parcelas exploradas da população, que têm seus direitos violados, que não têm acesso aos mínimos sociais, ou que são trabalhadores – mesmo no SUAS – acabam por compartilhar dessas mesmas visões preconceituosas. Acham que o pobre é culpado por ser pobre, que é pobre porque é vagabundo ou mesmo porque não estudou, não sabe se vestir, não sabe fazer um currículo. Mas estão invertendo causa e consequência: foi por ser pobre, explorado, barrado em seus direitos, que ele não estudou, que ele não se veste bem, que ele não sabe fazer um currículo etc. etc.
No dia a dia da AS isso se manifesta claramente nos supostos cursos profissionalizantes de empregada doméstica, jardineiro e outras atividades que colocam o pobre no seu lugar: servir os ricos e ganhar pouco. Em todos esses anos pelo Brasil ainda não vi em CRAS preocupado em desenvolver estratégias para que os filhos das famílias atendidas entrem na universidade, estudem no exterior. E se isso acontece hoje em certa medida no Brasil é em função de programas federais a respeito dos quais os CRAS parecem se manter em completo afastamento (proUni, políticas de cotas etc.).
Não dá para afirmar que o Brasil quer o SUAS. Não dá para afirmar nem mesmo que a AS quer o SUAS. O SUAS tem que ser construído contra a vontade de muitos. Por isso tem de ser constituído como uma vontade política, uma decisão do poder público com base na Constituição e na lei, mesmo que isso se dê contra as vontades e opiniões subjetivas e pessoais, e que ao mesmo tempo leve à mudança dessas opiniões subjetivas superando os preconceitos e as visões assistencialistas existentes na sociedade. A construção do SUAS é um processo político, não somente técnico.
Para avaliar essa “vontade política” é interessante ver como se dá o financiamento da AS. De acordo com o Pacto Federativo, o financiamento da AS é de responsabilidade compartilhada entre União, Estados e municípios.
Do governo federal, os recursos proveem das contribuições sociais. Desde o plano real (1993) esses recursos foram em parte desvinculados por uma emenda constitucional (DRU). Ou seja, passaram a ser remanejados da seguridade social para outras finalidades. Em 2013, 63 bilhões foram retirados da seguridade pela DRU.
Os repasses estaduais fundo a fundo para os municípios, em SP, atingiram em 2014 a marca de R$ 200 milhões. O que isso significa? 0,1% dos gastos estaduais. Além disso, é tão pouco automático, que os termos de repasse firmados com as prefeituras merecem cerimônia e foto no gabinete do secretário. Além disso, o governo do Estado mantém uma dotação de cerca de R$ 70 milhões no Fundo social de solidariedade, considerando-o política de AS.
Nos municípios, o orçamento da AS está entre os mais baixos, comparativamente às demais secretarias de atividades fim. Não se trata de propor valores equivalente à saúde e educação, mas mostrar a grande disparidade orçamentária. O pequeno percentual do orçamento carrega o valor dos repasses federais e estaduais. Ele é a medida da importância que é dada à Assistência Social pelo poder público.
A discussão do pacto federativo começa, portanto, pela discussão da responsabilidade de cada esfera de governo no financiamento da AS e das estratégias para o aumento dos recursos disponíveis.
Agora, duas perguntas: 1. por que a baixa importância? 2. E, mais recursos para quê? Para responder à primeia pergunta, é preciso identificar como o SUAS está na agenda política do município e no estado: o nível de entendimento dos prefeitos/vereadores, dos governadores/deputados como política pública e nível de prioridade/responsabilidade.
A posição da AS na agenda política está ligada ao reconhecimento e compreensão do SUAS:
1ª – O Poder Público e a sociedade reconhecem que a assistência social (serviços, benefícios e transferência de renda) é um direito constitucional? Como se comprova? 2ª – Quais as evidências (demonstração) de que os usuários do SUAS reconhecem o seu direito?
De certo modo, o reconhecimento social é que leva ao reconhecimento político. Se a população, começando pelos usuários, não entende e não tem a AS como uma política de garantia de direitos, valorizada como política estratégica, a classe política também não vai reconhecer e não vai priorizar. É claro que isso começa com a compreensão do SUAS pelos próprios trabalhadores do SUAS. É isso que vai permitir a participação social de fato.
Essa compreensão, por parte dos trabalhadores do SUAS e da população, não é apenas teórica, ela precisa ser prática. É preciso inserir na AS práticas de participação social permanentes e estruturais, não apenas para constar – como, aliás, ocorre em muitas Conferências Municipais. As ações e atividades da AS devem estar voltadas sempre para a discussão e afirmação de direitos, rompimento dos ciclos de dependência, discussão da situação real das famílias e comunidades, de seus problemas e das causas de seus problemas. Esse trabalho articulador é que leva, na prática, a uma nova concepção da política.
Vejam por exemplo as chamadas reuniões socioeducativas. Em vez de palestras sobre higiene ou saúde, que são muito comuns, por que não formar círculos de discussão sobre os problemas do bairro ou da comunidade? Discutir as barreiras de acesso aos direitos e as estratégias coletivas para sua superação?
Isso é hoje um desafio: abandonar as práticas rotineiras e tradicionais e adotar uma nova forma de atuação, ligada de fato à organização e participação das comunidades. Deixar de oferecer cursos, eventos, atividades sem fim, para trabalhar junto com os cidadãos e com os movimentos sociais.
Esse desafio de adotar novas práticas esbarra na formação social e acadêmica dos profissionais do SUAS, a baixa experiência de participação política de uma geração que é fruto ainda do autoritarismo e da ditadura. Daí a necessidade de propor uma formação continuada, não apenas técnica, mas também formação para a participação social democrática.
Os trabalhadores conhecem e se comprometem com as provisões do SUAS e seus princípios ético-políticos (por exemplo: direito à transferência de renda; aos serviços de qualidade; acesso à informação; convivência comunitária, dentre outros)?
Isso tudo é dificultado ainda por uma certa precariedade estrutural. Muitos municípios não conseguem formar e manter equipes completas de CRAS e CREAS. Em muitos municípios, o CREAS, por exemplo, conta com os mesmos profissionais para todos os diversos serviços: violência e abuso contra crianças e contra mulheres, medidas socioeducativas em meio aberto, população em situação de rua, idosos e por aí vai. As medidas socioeducativas talvez sejam o principal sinal de que estamos muito longe do SUAS, não do que queremos mas longe ainda do que já deveria ser.
Essa precariedade estrutural não permite nem de longe que os CRAS cumpram um de seus principais objetivos: acompanhar as famílias beneficiárias do Programa Bolsa Família (PBF). O PBF tem um caráter transgeracional: garantir a segurança de renda para que as crianças e adolescentes rompam o ciclo da pobreza e tenham oportunidade reais de estudar, chegar à universidade, superar as barreiras de acesso a seus direitos. Mas isso exige também um compromisso da família, baseado em conhecimento e informação. Esse conhecimento e informação, a discussão sobre as estratégias para a trajetória das crianças e adolescentes seria uma tarefa para os CRAS e para a rede socioassistencial conveniada. Para isso serviria por exemplo o serviço de fortalecimento de vínculos, que hoje infelizmente na maior parte do país é apenas um nome diferente para atividades recreativas, esportivas ou para palestras, tudo isso realizado fora da comunidade que deveria ter seus vínculos fortalecidos, e com pessoas de diferentes comunidades, aliás. Então, para a segunda questão (mais recursos para quê?), podemos dizer: completar a estrutura operacional dos CRAS e CREAS, mas para que eles passem a atuar de forma efetiva, com clareza de objetivos e com qualidade. Vejam, o PBF e a elevação do valor real do salário mínimo tiveram em dez anos mais resultados e impactos muito mais importantes do que décadas e décadas de trabalho assistencial na ponta. E no momento em que isso acontece, a estrutura socioassistencial tem a missão de potencializar esses resultados. Mas ainda não está fazendo isso. Se a AS nos municípios precisa de mais recursos para se estruturar, isso deve vir junto com novas práticas. Se for para oferecer vinte oficinas de corte e costura em vez de dez, os recursos a mais não valerão a pena.